A polêmica do aborto e o significado da voz passiva

Um cartaz contendo dizeres extravagantes em uma recente manifestação pró-abortista suscitou intensa polêmica nas redes sociais, opondo os partidários da legalização aos grupos “pró-vida”, isto é, radicalmente hostis à prática do aborto. O cartaz, concebido por um grupo ativista cognominado “Católicas pelo Direito de Decidir”, estampava em destaque os seguintes dizeres: “Até Maria foi consultada para ser mãe de Deus – Católicas na luta pelo aborto legal e seguro”. Esse cartaz foi amplamente reprovado pelos grupos pró-vida sob a alegação de que, embora Maria realmente tenha dito “sim” ao anjo e, deste modo, caracterizado a “consulta”, ela o teria feito “antes” de engravidar, e não “depois”.

Quem estará com a razão? Neste artigo, veremos que a querela tem origem menos religiosa, teológica, política ou ideológica do que linguística, resultante de um equívoco elementar, cometido por ambos os lados, no campo da comunicação, expressão e intelecção de textos em Língua Portuguesa.

Militante exibe cartaz em manifestação: ‘Até Maria foi consultada para ser mãe de Deus’

Em manifestação pública, militante do grupo “Católicas pelo direito de decidir ostentam cartaz: “Até Maria foi consultada para ser mãe de Deus”, dando origem a equívocos gravíssimos sobre o uso do verbo “consultar” na voz passiva. Fonte: Twitter.

Afinal, o que é “consultar”?

Tenho observado, não sem um certo grau de estupefação que, em certos casos, beira o horror, que praticamente todas as discussões públicas da atualidade no Brasil envolvem, direta ou indiretamente, uma incompreensão cabal do significado das palavras. As pessoas esbravejam e xingam umas às outras, mas é raro que alguém tenha a ideia elementar de “consultar” um dicionário para entender o que, afinal, significam as palavras-chaves que todos estão empregando em seus argumentos. Por conseguinte, fugiremos agora a essa regra: antes de dizer qualquer coisa sobre o cartaz que deu origem à polêmica, “consultaremos” o dicionário online Aulete para elucidar o que, afinal, significa o verbo “consultar”:

1. Pedir a (alguém, esp. especialista em determinado assunto) parecer, conselho, opinião etc. [td. : consultar uma astróloga.] [tdr. + sobre : Consultei o engenheiro sobre a obra.] [tr. + com : consultar -se com um médico.]

2. Dar consulta ou parecer (a). [td. : Às sextas-feiras consulta pacientes cobertos pelo plano de saúde.] [int. : O velho advogado parou de consultar.]

3. Buscar informação ou fazer pesquisa em; procurar esclarecer-se, informar-se ou conhecer alguma coisa por meio de. [td. : “Logo ia consultar um manual para esclarecer uma hipótese.” ( Pepetela , A geração da utopia) ]

4. Fig. Sondar, examinar antes de decidir; MEDITAR; REFLETIR [td. : consultar o coração/ a consciência.] [int. : Consultou -se antes de responder.]

[F.: Do lat. consultare.]

Observe que o verbo “consultar” é transitivo, isto é, uma ação que se dirige a outra pessoa ou coisa. O sujeito pode “consultar” o relógio para saber as horas, o dicionário para descobrir o significado de uma palavra, ou o médico em busca do tratamento para uma doença. Somente em sentido figurado a pessoa pode “consultar a si mesma”, mas é evidente que, mesmo nesse caso, há implícita a ideia de um sujeito que consulta e uma pessoa ou coisa a quem se dirige a consulta.

O significado da voz passiva

O próximo passo para entender a origem da polêmica é lembrar que a oração “Até Maria foi consultada” está na voz passiva. Segundo o cartaz, Maria não foi o “sujeito” da consulta, mas o seu “objeto”, a sua “receptora”, o “polo passivo” do ato de consultar. Deste modo, precisamos descobrir quem teria sido a outra pessoa autora da tal “consulta”.

Para isso, devemos recorrer ao trecho do texto bíblico que aborda a “Anunciação”, Lucas 1:26-38:

26 E, no sexto mês, foi o anjo Gabriel enviado por Deus a uma cidade da Galileia, chamada Nazaré,
27 A uma virgem desposada com um homem, cujo nome era José, da casa de Davi; e o nome da virgem era Maria.
28 E, entrando o anjo aonde ela estava, disse: Salve, agraciada; o Senhor é contigo; bendita és tu entre as mulheres.
29 E, vendo-o ela, turbou-se muito com aquelas palavras, e considerava que saudação seria esta.
30 Disse-lhe, então, o anjo: Maria, não temas, porque achaste graça diante de Deus.
31 E eis que em teu ventre conceberás e darás à luz um filho, e pôr-lhe-ás o nome de Jesus.
32 Este será grande, e será chamado filho do Altíssimo; e o Senhor Deus lhe dará o trono de Davi, seu pai;
33 E reinará eternamente na casa de Jacó, e o seu reino não terá fim.
34 E disse Maria ao anjo: Como se fará isto, visto que não conheço homem algum?
35 E, respondendo o anjo, disse-lhe: Descerá sobre ti o Espírito Santo, e a virtude do Altíssimo te cobrirá com a sua sombra; por isso também o Santo, que de ti há de nascer, será chamado Filho de Deus.
36 E eis que também Isabel, tua prima, concebeu um filho em sua velhice; e é este o sexto mês para aquela que era chamada estéril;
37 Porque para Deus nada é impossível.
38 Disse então Maria: Eis aqui a serva do Senhor; cumpra-se em mim segundo a tua palavra. E o anjo ausentou-se dela.

Na cena descrita pelo evangelista, as únicas pessoas presentes são Maria e o anjo Gabriel. Como o cartaz diz que “Maria foi consultada”, o sujeito da tal “consulta” teria de, obrigatoriamente, ser o anjo! Não se pode afirmar que, no texto acima, houve uma “consulta” com base em algo que Maria tenha dito mas, sim, nas palavras ou ações do anjo!

Porém, compare o texto acima com os significados possíveis do verbo “consultar”. O anjo “pediu parecer, conselho ou opinião” a Maria? Não, ele apenas “anunciou” a gravidez. Ele “ofereceu um conselho ou parecer” a Maria”? Também não. O anjo também não “fez pesquisa ou buscou informação” nem “sondou ou examinou antes de decidir”. Quando o anjo abordou Maria, a decisão já havia sido tomada. Ele apenas “informou” Maria de que ela daria à luz o Filho de Deus. A situação narrada no texto bíblico não configura uma “consulta”, mas um “anúncio” sendo, portanto, mui justamente referida como “Anunciação”!

Conclusão

Independentemente do lado em que o leitor se encontre no debate sobre a legalização do aborto, é forçoso admitir que o texto do cartaz do grupo “Católicas pelo Direito de Decidir” está simplesmente errado. Maria não foi “consultada”, mas “informada” pelo anjo de que ficaria grávida de Jesus, sendo exatamente esse o motivo pelo qual o episódio é referido como “Anunciação”. O fato de que o verbo “consultar” está na voz passiva implica logicamente que a suposta “consulta” seria decorrente dos atos e palavras do anjo e não das de Maria, resultando simplesmente errado o argumento de que o “sim” de Maria caracterizaria a “consulta”. Ou seja, em última análise, testemunhamos um debate estapafúrdio em torno de um equívoco em que ambas as partes tentavam refutar o erro do adversário recorrendo a um erro ainda maior.

Quem deseja contribuir produtivamente para um debate público deve esforçar-se para conhecer o significado das palavras em discussão e avaliar se o uso proposto pelos debatedores é aceitável ou se presta apenas à proliferação de mal-entendidos. Neste curso online de redação, você aprenderá técnicas para escolher a palavra mais adequada a cada situação, eliminando ambiguidades e garantindo sempre a melhor expressão para suas ideias – faça já sua matrícula!

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