Preconceito linguístico? (Redação de aluno do curso)

Nota do editor: Gustavo Antonio Noronha Lima é um jovem aluno deste curso online de Redação que obteve recentemente sua licenciatura em Letras. Ele produziu, na lição 73, um excelente artigo sobre tema polêmico e pertinente ao tema deste curso − o “preconceito linguístico” − e autorizou-me a publicá-lo neste blog. Observe que, como se trata de artigo assinado, os argumentos nele expressos não representam necessariamente a opinião deste site.

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Os “bons” acadêmicos: eu sei de quem a língua é!

Gustavo Antonio Noronha Lima
Foto: “Shocked And Surprised Triplets” por Stuart Miles - cortesia de Freedigitalphotos.net

Será que exigir obediência às regras da Gramática é uma forma de “opressão social”? Foto: “Shocked And Surprised Triplets” por Stuart Miles – cortesia de Freedigitalphotos.net

Entre os linguistas mais lidos nos cursos de Letras da atualidade estão Sírio Possenti e Marcos Bagno, dois defensores da tese do “preconceito linguístico”. Tais linguistas defendem a ideia de que pessoas das mais altas classes sociais e das regiões mais ricas do país conseguiram impor seu modo de falar e escrever como padrão nacional, utilizando-o para manter-se no poder. Segundo esses autores, em resultado do uso opressivo da norma padrão, criou-se uma cultura de preconceito contra os que não são capazes de seguir a norma culta através da definição, ainda que arbitrária, de noções de “certo” e “errado”. Analisaremos a seguir até que ponto as ideias desses dois nomes respeitados no meio acadêmico podem ser consideradas representativas da realidade brasileira.

Uma análise factual rapidamente revela que a “elite dominante”, composta pelos “cidadãos mais influentes” do Brasil, de fato, não busca de forma alguma o “comando” das mudanças da Língua Portuguesa. A elite econômica brasileira está longe de ser das mais letradas, demonstrando, na prática, total desinteresse na evolução do idioma. Por exemplo, não se tem notícia de que a família Marinho, controladora das Organizações Globo, ou outros empresários influentes no meio político já tenham promovido uma campanha ou, de outro modo, “mexido os pauzinhos” para que uma reforma ortográfica fosse realizada de acordo com seus desejos. No Congresso Nacional, um dos poucos políticos que se gaba de possuir um maior domínio do idioma português é o senador Fernando Collor de Mello, o qual, até onde sabemos, jamais escreveu uma dissertação sobre quais mudanças a língua, segundo seu julgamento, deveria sofrer. De todo o falatório dos acadêmicos, acusando elites imaginárias e vilões afins de tramarem contra a língua pátria, a conclusão a que chegamos é a de que os verdadeiros responsáveis pelas dezenas de mudanças que o português sofreu nos últimos cem anos foram os acadêmicos burocratas, isto é, aqueles ligados ao governo.

Um dos argumentos preferidos dos defensores da noção de “preconceito linguístico” é o de que a norma culta é necessária para obter acesso ao poder, tese defendida por linguistas como Possenti. Ora, o que esse autor deixa de esclarecer é de que forma o simples fato de conquistar ou não o domínio da norma culta serviria como instrumento de ascensão ao poder ou como forma de opressão. Possenti parece criar um mundo inexistente, fora da realidade, ao não perceber que, no Brasil, as classes altas nunca se interessaram especialmente pela aquisição de cultura (exemplos deste fato podem ser encontrados em obras de Lima Barreto como “Os Bruzundangas” ou “O Homem que Sabia Javanês”) sendo, em grande parte, incapazes de fazer uso da forma culta da língua. Outro fator que comprova a falácia no argumento de Possenti é o exemplo de homens como ex-presidente Lula e o deputado federal Tiririca que, embora incapazes de proferir um longo discurso sem cometer erros execráveis, conseguiram chegar aos mais altos cargos da república. Em resumo, a ascensão ao poder, no Brasil, não está diretamente ligada ao domínio da Gramática do idioma.

Uma outra tese defendida pela dupla Sírio e Bagno é a de que fala e a escrita dos pobres seria alvo de correções e deboches devido a seus erros gramaticais, enquanto os ricos estariam livres para falar da maneira que bem entendessem. Ora, a ideia de que são utilizados dois pesos e duas medidas na avaliação da expressão linguística de ricos e de pobres beira o ridículo pois esse tipo de crítica, em nossa cultura, é dirigido muito mais intensamente sobre a classe supostamente intelectualizada. Basta assistir a programas humorísticos e telenovelas da Rede Globo de Televisão para observar que a crítica mais contundente recai sempre sobre aqueles que criticam o uso errado do idioma, retratados como “esnobes” ou “elitistas”, em vez do contrário. Também é possível fazer um experimento: convide duas pessoas para uma festa, sendo que uma falará da maneira mais correta possível enquanto a outra falará erroneamente. Ao final do evento, verifique qual das duas pessoas receberá o maior número de críticas e elogios pelo seu modo de falar.

A Gramática surge através do uso da língua pelos grandes escritores − por exemplo, Luís de Camões e Machado de Assis. É fácil verificar a verdade dessa afirmação: basta observar que as gramáticas, na maioria dos casos, usam exemplos literários para demonstrar as regras da língua. Isso nos permite dizer que a língua portuguesa é a de Camões; a língua inglesa, a de Shakespeare; a língua italiana, a de Dante. Contudo, também existe a percepção de que a Gramática não será capaz de abarcar todos os usos da língua, o que dá origem a adaptações, como a “literatura de cordel”, os dialetos regionais, as letras de estilos musicais populares como o samba, os famosos “causos da roça” − enfim, é possível que as variantes coexistam, cada uma em seu lugar, no âmbito da mesma sociedade. Linguistas defensores da ideia de “preconceito linguístico” vivem alheios à realidade, argumentando com base na descrição de um país fictício, no qual só a norma gramatical culta seria aceita e, somente ela ditaria o que é certo e errado no idioma, ignorando todas as outras formas de expressão.

O que se vê nesse tipo de análises linguísticas é o total desconhecimento sobre a situação concreta dos problemas que apontam. Caso realmente haja pessoas da dita “classe dominante” tão desprovidas de inteligência que percam seu tempo discriminando pessoas de classe baixa devido ao uso que fazem da Língua Portuguesa, esse problema não estará, de forma alguma, vinculado à norma culta. Nessa hipótese teríamos, de um lado, indivíduos insensíveis, incapazes de perceber a situação socioeducacional precária do país; do outro, pessoas humildes sofrendo as consequências dessa mesma situação. No meio desse conflito, encontraríamos aqueles que deveriam estar se esforçando para entender a situação concreta mas que, ao contrário, não somente a ignoram como contribuem para agravá-la − os acadêmicos de Letras. Incapazes de esclarecer a situação para os dois lados do suposto “conflito”, os estudiosos profissionais do idioma pátrio acabam por criar um  debate totalmente falacioso que serve apenas para disseminar a desordem e impossibilitar a chegada a uma solução. Unindo-se o dinheiro e a capacidade de mobilização de capital humano da “elite” com o conhecimento dos acadêmicos, deveria ser possível desenvolver projetos de alfabetização e de disseminação da norma culta que dariam resultados muito melhores do que esse conjunto acusações vazias e estéreis.


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