Reflexões livres sobre o trabalho de tradução

Fui contratado, há pouco tempo, para traduzir uma obra literária. Trata-se de um desafio muitíssimo interessante que suscitou em mim uma miríade de reflexões sobre o ato de escrever porque o ofício de “traduzir” se manifesta, na prática, como a recriação de uma obra existente em idioma diverso do original. De fato, o que todo tradutor deseja é reproduzir, tão fielmente quanto possível no idioma de destino, a experiência desfrutada pelos leitores da obra em seu idioma de origem. A grande dificuldade resulta de que a experiência do leitor com um texto qualquer, especialmente uma obra literária, é a resultante das escolhas do autor tais como se manifestam nos três eixos fundamentais que apresentamos na figura 1.

 Figura 1: Os três eixos fundamentais da experiência do leitor com um texto.

Figura 1: Os três eixos fundamentais da experiência do leitor com um texto.

O autor, ao criar um texto, procede à articulação de signos linguísticos em três vetores. O primeiro é o que chamo de “Voz do autor”, compreendendo a sonoridade das palavras escolhidas, o ritmo e a melodia internos ao fluxo do texto, as inversões e decisões sintáticas, a extensão das frases e parágrafos, entre outros elementos que tornam um autor reconhecível em seu próprio texto, ainda que não tenha se identificado.

O segundo vetor é o do significado. Este vetor compreende tudo o que o autor disse, explícita ou implicitamente, denotativa ou conotativamente, inclusive o seu uso de humor e ironia, a intencionalidade subjacente às figuras de estilo que emprega, o sentido das analogias a que recorre, o rumo geral da argumentação, a aplicação de técnicas de persuasão, a seleção e a exposição de fatos, entre muitos outros componentes que definem o “conteúdo da mensagem”.

Finalmente, o terceiro vetor se refere à inteligibilidade do texto por parte do leitor pretendido. De modo geral, praticamente todo escritor (há exceções!) redige o seu texto tendo em mente um “leitor ideal” capaz de entendê-lo sem grande esforço.

Em um mundo ideal, o tradutor conseguiria sempre reproduzir com perfeição todas as sutilezas da voz do autor e cada uma das mais tênues nuanças de significado em um texto tão inteligível em seu idioma pátrio quanto no original. Na prática, porém, o tradutor se sente, nos mais das vezes, como se usasse um cobertor curto, porquanto cada decisão que privilegia um vetor origina uma deformação nos demais.

Figura 2: Quando o tradutor privilegia a inteligibilidade, é inevitável uma deformação na voz e no significado originais.

Figura 2: Quando o tradutor privilegia a inteligibilidade, é inevitável uma deformação na voz e no significado originais.

Observe, por exemplo, a figura 2. Nesse caso, o tradutor optou por enfatizar a legibilidade com o sacrifício da voz do autor, bem como de parte do significado original. Este tipo de deformação é praticamente inevitável quando o trabalho se destina a um público menos instruído do que o originalmente pretendido pelo autor, por exemplo, nas adaptações de obras literárias para o público infanto-juvenil, ou nas atualizações de obras antigas para a linguagem atual.

Figura 3: A busca obsessiva pela fidelidade ao significado original pode comprometer até mesmo a inteligibilidade da tradução.

Figura 3: A busca obsessiva pela fidelidade ao significado original pode comprometer até mesmo a inteligibilidade da tradução.

Na figura 3, você pode ver a representação gráfica de uma situação em que o tradutor opta pela busca obsessiva do significado original em prejuízo da voz do autor e da própria inteligibilidade texto. Este tipo de deformação é comum na tradução de textos acadêmicos, sejam de natureza científica ou filosófica, em que o tradutor, temendo ser acusado de “adulterar” o sentido original, produz uma tradução que, por vezes, obriga o leitor, para entender a tradução, a um esforço muito maior do que seria necessário caso conhecesse o idioma original.

Figura 4: A ênfase na voz do autor é frequente na tradução de textos poéticos.

Figura 4: A ênfase na voz do autor é frequente na tradução de textos poéticos.

Finalmente vemos, na figura 4, a situação, frequente na tradução de textos poéticos, em que o tradutor se preocupa tanto em reproduzir a voz do autor que, de certa forma, acabando escrevendo um “poema original”, diferente do que pretendia traduzir, tamanhas são as deformações introduzidas no significado e na inteligibilidade.

Como encontrar o equilíbrio entre os vetores de tradução

A primeira ideia que, provavelmente, ocorrerá às pessoas que se defrontam com o desafio de equilibrar os vetores voz/significado/inteligibilidade em um projeto de tradução costuma ser a busca do “meio-termo”, isto é, a mistura de um “pouco” de cada ingrediente com sacrifício de “um pouco” dos demais. Embora a ideia faça sentido no plano das hipóteses, a verdade é que, na prática, o resultado dessa opção costuma ser bisonho. Em primeiro lugar, porque não existe uma régua capaz de medir o quanto, exatamente, é “um pouco”. Segundo, é difícil prever o impacto real de cada decisão do tradutor, pois até mesmo uma pequena alteração em um dos componentes pode produzir uma grande deformação nos demais. Terceiro, a mistura “equitativa” de técnicas de influenciar vetores quase sempre é tão desastrosa quanto uma mistura “equitativa” dos ingredientes de um bolo. Não, infelizmente, você não obterá um bolo comestível misturando duas xícaras de sal, duas xícaras de açúcar, duas xícaras de fermento, duas xícaras de farinha, duas xícaras de margarina… É preciso misturar os ingredientes nas proporções exatas!

É por isso que, de acordo com meu julgamento, as melhores traduções são aquelas que procuram se aproximar das proporções originais adotadas pelo autor. Por exemplo, quando o autor original enfatiza, acima de tudo, a inteligibilidade, com sacrifício de uma voz personalizada e de sutilezas no significado, essa deve ser orientação geral da tradução, o mesmo sendo válido para todos os demais vetores.

Assim, embora a tradução seja uma tarefa que se cumpre palavra a palavra, frase a frase, parágrafo a parágrafo, o trabalho do tradutor não se encerra no momento em que ele verte a última palavra do original para o seu idioma pátrio. Ao contrário, esse é o momento em que ele dá início a uma revisão geral do conjunto da tradução. Nesta etapa, o tradutor compara os vetores da versão que produziu com os do original, alterando palavras, frases e parágrafos de modo a minimizar as inevitáveis deformações e produzir no leitor uma experiência de leitura o mais próxima possível da que obteria caso fosse um leitor nativo do idioma do texto original.

Aulas de Redação Online